No segundo semestre de 2023, a Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) conduziu processos de escuta e diálogo com pessoas refugiadas sobre diferentes recortes temáticos, como acesso a emprego e renda, assistência social e educação. Chamado de “Diagnóstico Participativo”, o mecanismo de compreensão e análise das principais reivindicações de refugiados e outros deslocados forçados envolveram 218 participantes em todo o Brasil, de 15 cidades localizadas nos estados do Amazonas, Goiás, Pará, Rio de Janeiro, Roraima, São Paulo e no Distrito Federal.
O estudo pode ser acessado na íntegra aqui.
Os principais desafios enfrentados pela população refugiada, bem como as soluções sugeridas, foram agrupados em seis eixos temáticos, identificados como prioritários: i) apoio econômico e assistência social; ii) moradia, água, saneamento e higiene; iii) acesso a emprego e renda; iv) educação; v) unidade familiar; e vi) saúde.
No âmbito do apoio econômico e assistência social, barreira linguística, falta de informações sobre programas sociais e casos de xenofobia em sistemas públicos de atendimento estão entre dificuldades mais citadas por essa população. “Fica claro que dão prioridade (no atendimento público) para os brasileiros. Se for estrangeiro, criam muitas dificuldades e barreiras, solicitam mais documentos do que é exigido e por isso às vezes desistimos”, afirmou um homem durante a realização de uma etapa do processo.
Na perspectiva da moradia, temas como condições precárias de moradia, infraestrutura inadequada e mesmo insegurança nos bairros foram temas comuns em diferentes localidades. Sobre o tema da empregabilidade, o desafio de inserção nas áreas de formação do país de origem, a alta incidência de trabalho informal e subemprego e a dificuldade de acesso aos programas de microcrédito contextualizam a realidade enfrentada pelas pessoas refugiadas entrevistadas. “O fato de não sabermos como conseguir crédito no Brasil para iniciar os nossos empreendimentos faz com que precisemos emprestar dinheiro de agiotas, o que é perigoso”, disse uma mulher haitiana.
Já no campo da educação, as barreiras linguísticas, a dificuldade de acesso aos locais de estudo e a evasão associada à violência e discriminação no ambiente educativo são listadas como alguns dos principais desafios existentes.
De forma transversal às temáticas, as pessoas refugiadas propuseram soluções que destacam a importância do acesso à informação de qualidade, verídica e atualizada, bem como de formações sobre temas diversos que agreguem conhecimentos sobre a realidade brasileira. Elas também enfatizaram a necessidade de mais ações de engajamento do setor privado e do aprimoramento de políticas públicas, com efetiva participação em medidas que impactem diretamente suas vidas no Brasil.
“A realização deste constante processo de diálogo, com escuta ativa e plano prático de encaminhamentos, considera em primeiro plano as opiniões e visões das pessoas refugiadas e em necessidade de proteção internacional, sendo um elemento fundamental para o planejamento dos trabalhos do ACNUR. Seguimos atentos às necessidades dos refugiados no Brasil para a construção de planos e políticas sólidas que facilitem o processo de acolhimento e integração dessa população, conciliando parcerias públicas e privadas para ampliarmos nossas respostas”, afirma o Representante do ACNUR no Brasil, Davide Torzilli.
Composição da amostra e metodologia
As pessoas refugiadas participantes do Diagnóstico Participativo de 2023 foram maioritariamente venezuelanas, representando 54% dos respondentes, seguidas por haitianas (21%), afegãos (9%), colombianos (5,5%), cubanos (3,5%) e sírios (1,4%).
Como forma de contemplar uma amostra diversa de perfis e localidades, porém não representativa estatisticamente da população refugiada no Brasil, adotou-se a abordagem de idade, gênero, e diversidade, assim como se considerou as diferentes nacionalidades e aspectos socioeconômicos.
Para o desenho dos temas a serem discutidos, primeiramente realizou-se uma revisão das informações existentes sobre as lacunas de proteção e integração enfrentadas por pessoas forçadas a se deslocar de diferentes nacionalidades. Em seguida, foi conduzido um mapeamento das populações refugiadas, a fim de definir quais comunidades e indivíduos participariam do processo de consulta, baseando-se na maior diversidade agregada. A partir disso, foram propostas as agendas de encontro, conforme a disponibilidade das pessoas participantes e dos parceiros do ACNUR.
Para cada grupo, formado entre seis e 10 pessoas, foram apresentadas 12 temáticas para discussão, na qual deveriam selecionar até quatro assuntos a serem discutidos de forma prioritária, com o apoio de perguntas conduzidas por mediadores do ACNUR ou de organizações parceiras.
Como complemento ao conteúdo das temáticas, o relatório traz também as experiências das pessoas refugiadas participantes dos encontros com base na idade, gênero e diversidade, destacando segmentos específicos como jovens; mulheres e meninas; populações indígenas; idosos; pessoas LGBTQIA+; e pessoas com deficiência.
Recortes regionais
No Amazonas, os processos de escuta foram conduzidos em Manaus, Iranduba e Tabatinga, envolvendo 46 participantes. Em Manaus, cinco consultas foram realizadas com 33 pessoas do Haiti e de Cuba. Em Iranduba, na Região Metropolitana de Manaus, uma pessoa foi consultada, enquanto 12 pessoas foram consultadas no município de Tabatinga, na região de fronteira.
Na capital amazonense, os participantes destacaram desafios relacionados ao apoio econômico, dificuldades de acesso ao mercado de trabalho formal, à educação e a serviços socioassistenciais. A barreira linguística foi mencionada como um desafio tanto no campo econômico quanto nas questões educacionais.
O diagnóstico revelou que a falta de apoio econômico e assistência social foi o principal desafio apontado pelos participantes na capital amazonense. A discriminação também foi apontada como uma barreira para o acesso à rede de acolhimento, bem como a falta de informação sobre benefícios sociais e a dificuldade de acessar serviços de assistência para idosos e trabalhadores rurais.
Os desafios inerentes ao ingresso no mercado de trabalho formal foram destaque, com participantes mencionando questões de exploração laboral e custos relacionados à revalidação de diplomas. A educação também foi um ponto de preocupação, com escassez de vagas em creches, dificuldades de acompanhamento das aulas devido ao idioma e barreiras na aceitação da documentação para matrícula.
No contexto nacional, o diagnóstico sublinhou que barreiras linguísticas e a falta de conhecimento sobre marcos legais e procedimentos prejudicam o acesso dos refugiados à informação e aos seus direitos. Nesse contexto, aprimorar os canais de comunicação, disponibilizando informações em uma linguagem simples e em diversos idiomas, torna-se crucial.
As limitadas opções para acesso a meios de vida e renda foram identificadas como fatores que dificultam a integração efetiva dos refugiados e migrantes. Esta situação compromete o acesso a direitos e serviços básicos, incluindo moradia digna e alimentação adequada. A escassez de recursos econômicos amplifica os problemas de saúde mental decorrentes da experiência de deslocamento forçado e expõe essas pessoas a uma série de riscos, como a residência em áreas periféricas expostas ao crime organizado e a exploração laboral.
Para enfrentar essas situações, é fundamental apoiar a inserção dos refugiados e migrantes no mercado de trabalho formal, estimular o empreendedorismo e facilitar a revalidação de diplomas. Além disso, o diagnóstico constatou a falta de conhecimento e preparação por parte de funcionários públicos e prestadores de serviços. Nesse sentido, o compartilhamento de informações sobre os direitos dos refugiados e migrantes, aliado à sensibilização e à capacitação destes profissionais, torna-se essencial para superar as barreiras identificadas.
O engajamento em atividades e projetos que promovam a coexistência pacífica entre refugiados, migrantes e a comunidade de acolhida é fundamental para abordar de maneira eficaz os desafios enfrentados por aqueles que necessitam de proteção internacional.
Por fim, o ACNUR reafirma seu compromisso em apoiar iniciativas conjuntas para superar os desafios apresentados e reconhece a importância da participação dos atores locais, autoridades e sociedade civil para construir soluções duradouras.
Foto: Felipe Irnaldo/ACNUR